Entrando em contato com a neurose

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“Portanto nem todo contato é saudável, nem toda fuga é doentia. Uma das características do neurótico é não poder fazer bom contato, nem organizar sua fuga.” Fritz Perls

O ciclo de contato é parte essencial da Gestalt-terapia, podemos considerá-lo como a maneira que o organismo tem de estabelecer trocas com o ambiente, visando a satisfação de alguma necessidade emergente, ou melhor, o fechamento de uma Gestalt.

“Gestalt” é uma palavra alemã que não tem tradução exata no português, mas pode ser traduzida como “forma” ou “configuração”, no conceito gestáltico toda necessidade que emerge e não é suprida deixa uma gestalt aberta que eventualmente deverá ser resolvida.

Nós evitamos fechamentos de gestalten através de diversos mecanismos de evitação de contato (ou mecanismos de defesa). Com esses mecanismos evitamos contato com nossas necessidades vitais e acabamos suprindo-as de maneiras não-autênticas. A intenção da Gestalt-terapia ao determinar tipologias NÃO é para rotular ou engessar pessoas, mas sim encontrar um norte diante do impasse que tal pessoa está vivendo e desenvolver técnicas de tratamento eficientes que se adequem a cada paciente/queixa.

Um tipo de padrão de comportamento neurótico pode ser prevalecente ou sobressaliente em certa pessoa, porém todos os comportamentos estão diretamente interligados, portanto, para abordá-los é imprescindível determinar uma pauta e trabalhar a partir de uma queixa específica, com detalhes dos fatos e contextualização.

Os mecanismos neuróticos são disfuncionais quando usados em excesso ou inadequadamente. Para Gestalt-terapia, saúde mental tem a ver com a capacidade do ser humano de fazer escolhas conscientes que contemplem todos as partes do seu “eu” e de se adaptar ao meio como ele é, suprindo de maneira saudável suas necessidades vitais, sem neglicenciar a si mesmo.

Quando estamos operando em um determinado padrão de comportamento neurótico, automaticamente repetimos um funcionamento que um dia nos foi útil. Geralmente, desenvolvemos esses mecanismos como defesa, para garantir a sensação de sermos amados e protegidos em meio à situações hostis. Isso ocorre quando é extremamente doloroso entrar em contato com a verdade dos fatos.

Os comportamentos neuróticos mais difíceis de transformar são aqueles que desenvolvemos na infância. Uma criança não tem repertório nem maturidade emocional para lidar com o funcionamento neurótico de seus provedores, seja pais agressivos, exigentes, autoritários, ausentes, não-amorosos ou extremamente protetores; ou com o sentimento de rejeição; ou ainda um lar caótico; dentre outras situações traumáticas. Para conseguir sobreviver em tal ambiente, a criança desenvolve mecanismos de defesa, de evitação de contato. Nessa situação, tal comportamento é extremamente funcional, a neurose surge quando o contexto muda e a pessoa não consegue se adaptar ao novo ambiente, utilizando-se de um padrão de funcionamento defasado ou inadequado para a nova situação.

Mesmo que inconscientemente, uma pessoa sempre buscará resolução para seus traumas e conflitos mais doloridos, geralmente aqueles ocorridos na primeira ou segunda infância (gestação até adolescência).

A alma só sossega quando encontra a verdade.

Portanto enquanto isso não acontecer, a pessoa frequentemente caminhará em ciclos, repetindo os mesmos padrões de comportamento e recriando o mesmo cenário (muitas vezes com protagonistas diferentes), no intuito de suprir necessidades vitais que não foram atendidas, buscando resoluções para seus conflitos ou fechamento de gestalten.

A Gestalt-terapia trabalha com a premissa de que a autonomia e consciência podem ser devolvidas a toda e qualquer pessoa, ou seja, o ser humano pode recriar e transformar sua realidade a qualquer momento de sua vida.

É preciso (realmente) querer.

O inferno são os outros

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“Uma cultura de paz é uma cultura de tolerância ativa, mas também é, acima de tudo, uma cultura de conhecimento de si. É extremamente importante nós nos conhecermos e sabermos quem somos, quais são nossas limitações e anseios, por exemplo, e aproveitarmos para aplicar isso em nós mesmos.”

trecho do livro “O inferno somos nós” de Leandro Karnal e Monja Coen

A projeção foi um dos primeiros mecanismos neuróticos de evitação de contato descritos por Fritz Perls, segundo ele: “a projeção é a tendência em fazer o meio responsável pelo que se origina na própria pessoa”. O funcionamento do projetivo é  muito bem descrito na frase icônica do existencialista Jean-Paul Sartre, emprestada para título desse texto. A pessoa que se utiliza desse mecanismo frequentemente tem necessidade de transformar o outro em vilão, falhando em perceber o óbvio: que ela é a única responsável por escrever sua própria história.

Perls ainda descreve a projeção da seguinte maneira: “clinicamente reconhecemos a doença da paranoia, que é caracterizada pelo desenvolvimento de um sistema altamente organizado de ilusões, como caso extremo da projeção. A paranoica tem sido, caso após caso, a personalidade mais agressiva, que incapaz de suportar a responsabilidade de seus próprios sentimentos e vontade, projeta suas fantasias em objetos ou pessoas do meio.”

Assim, o projetivo está sempre cheio de suspeitas, projetando no outro tudo que há de errado na sua relação com o mundo. Sua principal introjeção é “não posso sentir o que sinto”. A pessoa com essa predominância de funcionamento vive uma cisão entre o que ela pensa que é x o que ela de fato é. Por isso são gritantes as incoerências entre o que diz e o que faz, já que ela mesma não se reconhece em suas ações.

Provavelmente foram filhos muito julgados ou superprotegidos. A mensagem que receberam de seus principais cuidadores é “sozinho você não pode”, algo que gera grande insegurança interna. Por não terem aprendido a confiar em si mesmos, se apoiam em demasia no meio (ou nos pais).

Os projetivos demonizam todos, mas são incapazes de demonizar seus pais. “Tirar os pais do pedestal” é questionar sua própria história e isso é algo extremamente difícil para eles. Cresceram em ambientes onde foram extremamente exigidos ou onde receberam muito pouco e, portanto, não aprenderam a confiar no vínculo, por isso são inseguros e desconfiados.

São pessoas que aparentemente se mostram confiantes, com grande autoestima, mas na verdade têm pouca noção de si mesmo e um ego inflado. Com sua teimosia e arrogância falham em reconhecer seus erros, em pedir desculpas, em olhar a realidade dos fatos como eles são, em fazer uma análise assertiva dos conflitos que vivem, e principalmente, falham em identificar suas responsabilidades nas escolhas que fazem.

Concentram muita energia no que está fora, possuem crenças engessadas e polarizadas, falam constantemente sobre algo ou alguém. Nutrem intensa admiração por seus ídolos, defendem com veemência as causas que acreditam. Quando falam de si, raramente expressam autoresponsabilização e constantemente se valem de um discurso vitimista.

Um projetivo em estado cristalizado ou neurótico, apresenta um agir  impulsivo e inconsequente. Muitas vezes, está tão obcecado em achar um culpado ou condenar alguém que acaba se perdendo em processos fantasiosos e paranóicos. São estes os casos extremos descritos por Perls. E dessa maneira, quanto mais mantém o foco no outro, mais evita contato com suas dores mais profundas. Esse modo tão neurótico de funcionar o impede de crescer, aprender, mudar.

Os projetivos raramente vão para terapia, já que não dão conta do processo terapêutico. Portanto, só vão para terapia para resolver questões pontuais que estejam lhe causando muita dor, e como entendem que o outro é principal responsável por seu sofrimento, geralmente é nele que deposita o foco de sua narrativa. Nesse sentido, a projeção é um mecanismo desafiador para o terapeuta, pois para quem projeta o papel de vítima é confortável e o único que, desde uma idade muito precoce, aprendeu  a utilizar para manipular o meio e conseguir suprir suas demandas emocionais.

O desafio do psicólogo é conseguir fazer com que o projetivo conjugue o verbo em primeira pessoa e aprenda a se responsabilizar por sua parte nos conflitos que vive e nas escolhas que faz. As terapias em grupo funcionam melhor para esse tipo de pessoa, já que ela opera através do espelhamento no outro e nunca através de um mergulho aprofundado em si. Assim sendo, para quem projeta é sempre mais cômodo acreditar que o inferno são os outros, do que entender que o seu inferno é ele mesmo quem cria.

*Créditos para Yara Gualda Carneiro do Instituto de Gestalt de Curitiba em aula sobre “projeção” do curso de Formação em Gestalt-Terapia.

Ainda sobre os mecanismos de evitação de contato da Gestalt-terapia:

Introjeção

Confluência

Isolamento

Deflexão

 

 

 

Noiva em confluência

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Noiva em Fuga (Runaway Bride) é um longa de comédia romântica que recheia a lista de clássicos românticos da década de 90, foi pouco aclamado pela crítica, e traz pouca novidade para um gênero onde sobram clichês e falta originalidade de roteiro.

Protagonizado por Richard Gere e Julia Roberts, conta a história da jovem Maggie que fica falada em sua pequena e pacata cidade por fugir do altar três vezes consecutivas. Ike Graham, é um repórter de Nova York que quer salvar sua decadente carreira e resolve escrever a história da famosa “noiva em fuga”. Dentro dos exemplos de mecanismos de evitação de contato na Gestalt-terapia, podemos dizer que Maggie faz confluência.

A confluência foi um dos primeiros mecanismos de evitação de contato descritos por Perls, ele a explicou como sendo o tipo de interação em que o indivíduo não sente haver uma barreira entre ele e seu meio, quando sente que ele próprio e o meio são um só. Em estado patológico de confluência, a pessoa não consegue fazer contato consigo mesma, nem distinguir-se do meio. Em termos mais simplificados, confluir é perder-se no outro, portanto sua polaridade é o “isolamento”.

Um indivíduo quando conflui é aquele que sempre se esforça ou muda para agradar ao outro, que tem dificuldade de se posicionar ou agir quando suas ideias destoam do todo e prefere sempre evitar conflitos. A cena clássica do filme é quando Ike confronta Maggie sobre como ela gosta de comer ovos no café da manhã. Ao estudar seus relacionamentos passados ele descobre que ela gosta ovos de acordo com o que cada noivo prefere. “Você é a mulher mais perdida que conheço, tão perdida que não sabe nem como quer comer ovos! Com o padre, eram mexidos; com o hippie eram fritos; com o outro, eram escaldados, e agora, só com claras!”

Uma metáfora clássica para pessoas em confluência, que geralmente perdem-se mais ainda quando se apaixonam. Relacionar-se certamente inclui o movimento de moldar-se ao outro, faz parte de um bom contato e do crescimento da relação mudar, ceder, negociar. Mas, existe uma dose saudável para isso, que depende de cada pessoa e relação. O que não é saudável é tornar-se igual ou o que o outro deseja para agradá-lo. No fim das contas ninguém (em sanidade mental) gosta do que não é autêntico. Na maioria das vezes os relacionamentos com pessoas confluentes acabam justamente porque é cansativo e entediante relacionar-se com alguém que não tem opinião própria, nem firmeza de querer. A mesmice não gera crescimento nem mudança, só fazemos contato com aquilo que nos é diferente.

A jornada da “Noiva em Fuga” é interessante do ponto de vista da psicologia, pois no decorrer da historia ela se dá conta que precisa conhecer melhor sobre si antes de relacionar-se. Trata-se daquele antigo clichê, que merece ser revisitado. Para amar o outro, ela precisa antes descobrir quem é, o que gosta, o que quer. Conhecer suas fronteiras, e tornar-se inteira. “Queria dizer a você sobre porque fujo, às vezes, corro das coisas, quando eu caminhava até o altar, era para alguém que não fazia ideia de quem eu era realmente. E só a metade da culpa era dele, pois fiz todo o possível para convencê-lo de que eu era exatamente o que ele queria. Então, foi bom eu não ter levado adiante, porque teria sido uma mentira. Adoro ovos mexidos! Odeio todos os outros!”

Como todos os mecanismos de contato, a confluência também pode ser funcional, é importante e nobre cedermos em prol do outro, e muitas vezes evitar conflitos e discussões que não são importantes. “Escolher nossas batalhas” (pick your battles), mas para isso antes precisamos descobrir quais são nossas batalhas. O convite ao padrão confluente é aprender sobre si, experimentar coisas novas, pensar e decidir sem a interferência de outros ou a preocupação excessiva em agradar. Começa passando por gostos simples, como preparo de ovos, mas inclui também questões importantes como estilo de vida, sonhos, desejos, valores e crenças.

Ainda sobre os mecanismos de evitação de contato:

Isolamento

Deflexão

Introjeção

Comer, Rezar, Amar e Introjetar

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“E uma vez que já estou ali ajoelhada no chão em posição de súplica, deixem-me manter essa posição enquanto viajo no tempo até três anos atrás, até o instante em que toda esta história começou – um instante que também me encontrou nessa mesma exata posição: de joelhos, no chão, rezando. No entanto, tudo o mais em relação à cena de três anos atrás era diferente. Daquela vez eu não estava em Roma, mas sim no banheiro do andar de cima da grande casa no subúrbio de Nova York que eu acabara de comprar com meu marido. Eram mais ou menos três horas da manhã de um novembro gelado. Meu marido dormia na nossa cama. Eu estava escondida no banheiro pelo que deveria ser a 47a noite consecutiva, e – como em todas aquelas outras noites – estava soluçando. Soluçando com tanta força, na verdade, que uma grande poça de lágrimas e muco se espalhava à minha frente sobre os ladrilhos do banheiro, um verdadeiro lago formado por toda minha vergonha, medo, confusão e dor. Eu não quero mais estar casada. Eu estava tentando tanto não saber isso, mas a verdade continuava a insistir. Eu não quero mais estar casada. Não quero morar nesta casa grande. Não quero ter um filho.” Elizabeth Gilbert em Comer, Rezar, Amar.

Embora não seja próprio do espírito gestáltico falar em tipologia, Fritz Perls e outros gestaltistas descreveram alguns “modos operantes” utilizados para evitação de contato com o outro, com o meio ou com situações de conflitos emocionais. Os gestaltistas chamaram estes modos de se relacionar de “Mecanismos de Evitação do Contato” ou “Mecanismos de Defesa”.

Os mecanismos de evitação de contato são recursos que desenvolvemos desde muito cedo,  primeiramente como forma de ajustamento e sobrevivência ao modo (muitas vezes disfuncional) como nosso sistema familiar está organizado; posteriormente repetimos os mesmos padrões em outros círculos relacionais. Todos nós alternamos entre os diferentes mecanismos, de acordo com dada situação ou conflito, por isso não se deve “engessar” alguém em um determinado mecanismo. Porém, fala-se em prevalências, que moldam nosso funcionamento e personalidade.

A introjeção é uma manobra onde o sujeito incorpora ideias, sentimentos, comportamentos e uma série de outros aspectos do ambiente. Há um processo passivo de “engolir” o que vem de fora e assim a pessoa acaba entrelaçando as próprias escolhas, preferências e opiniões com as dos outros e tendo dificuldade de diferenciar o que é realmente seu.

Segundo Perls, “não há nada em nossas mentes que não venha do meio, e não há nada do meio para o qual não haja uma necessidade orgânica, física ou psicológica. Estas devem ser digeridas e dominadas se quiserem se tornar nossas de verdade, realmente uma parte da nossa personalidade. Mas se simplesmente as aceitamos completamente e sem crítica, baseados na palavra de outra pessoa, ou porque estão na moda, ou são de confiança, ou tradicionais, ou antiquadas ou revolucionárias – tornam-se um peso para nós. São realmente indigeríveis. Ainda são corpos estranhos, embora tenham se instalado em nossas mentes.” (Fritz Perls em “A abordagem gestáltica”, p. 46 e 47)

No livro “Comer, Rezar, Amar”, a personagem principal se vê em meio a uma crise existencial quando dá-se conta que a vida “nos eixos” que escolheu não é exatamente a vida que ela quer viver. Ela termina um relacionamento de anos, abandona uma vida considerada por muitos “perfeita” e embarca em uma jornada em busca de autoconhecimento, do que lhe serve, e o que não lhe serve, de desconstrução de crenças e valores.

A pessoa que introjeta é aquela que segue regras, faz tudo “certinho”, mas nem sempre é feliz. Introjetores são pessoas que se esforçam para manter e seguir regras, muitas vezes são religiosos, conservadores e radicais em seus posicionamentos. Introjetores podem ser extremamente incoerentes, pois não conseguem manter conexão clara entre o que acreditam e o que fazem. Outras vezes, esforçam-se demasiadamente para manter essa coerência, tornando-se pessoas cristalizadas, sem autenticidade e espontaneidade. As crises surgem quando encontram-se em situações conflituosas e de grandes impasses emocionais e dão-se conta que mesmo fazendo tudo “certinho”, os resultados nem sempre são aqueles esperados.

Lembrando que todo mecanismo pode ser funcional, a introjeção é saudável quando utilizada em situações em que as regras precisam ser cumpridas para que a ordem seja mantida. Ninguém pode sair nu na rua, por exemplo, existe um senso comum em que nos baseamos para que tenhamos uma vida relativamente harmoniosa em comunidade. Introjetar torna-se um mecanismo neurótico quando passamos a seguir regras, sem questionar, a nos esforçar para agradar os demais, quando nos tornamos radicais em nossas crenças e valores sem considerar ou ponderar crenças e valores alheios.

Para uma vida emocionalmente saudável é preciso que aprendamos a “mastigar” antes de engolir os muitos introjetos que nos são impostos desde pequenos. A partir da maturidade podemos criar autonomia para fazer nossas próprias escolhas e filtrar aquilo que nos serve. O convite é ampliar o mapa mental através da análise individual de cada conflito e queixa, com contextualização para aquela situação específica, também é importante falar sem utilizar-se de generalizações e entender o que funciona para si, que é diferente do que funciona para os outros. Sim, a saúde consiste no equilíbrio, e temos que lembrar sempre que ele é diferente para cada um de nós.