A insustentável leveza de ser

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“Mas será mesmo atroz o peso e bela a leveza? O mais pesado dos fardos nos esmaga, verga-nos, comprime-nos contra o chão. Na poesia amorosa de todos os séculos, porém, a mulher deseja receber o fardo do corpo masculino. O mais pesado dos fardos é, portanto, ao mesmo tempo a imagem da realização vital mais intensa. Quanto mais pesado é o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais real e verdadeira ela é. Em compensação, a ausência total de fardo leva o ser humano a se tornar mais leve do que o ar, leva-o a voar, a se distanciar da terra, do ser terrestre, a se tornar semi-real, e leva seus movimentos a ser tão livres como insignificantes. O que escolher, então? O peso ou a leveza?” Milan Kundera

A complexidade do viver e dos conceitos morais não é assunto novo nem pouco abordado, foram temas muito explorados por existencialistas como Schopenhauer e Nietzsche. O escritor Milan Kundera inicia um de seus mais famosos romances citando o conceito do eterno retorno de Nietzsche. Kundera é genial porque conseguiu traduzir em suas palavras a dualidade que propõe, “A insustentável leveza do ser” é um romance complexo e denso, ao mesmo tempo que tem leveza.

O livro nos apresenta quatro personagens, todos perdidos diante da contradição entre valores que alguns consideram anacrônicos, de cujos pesos, querem ver-se livres, e os valores que criam para si mesmos a fim de darem sustentação aos seus seres. Pois uma vida que se pretende mais leve pode ser tão opressora à existência quanto uma em que são incontáveis os fardos. Kundera é gênio e sábio, ele sabe que grandes experiências, de fato, tornam a vida mais pesada.

Life is messy.

A verdade é que a vida real é bagunçada, complicada, densa. Existe de um lado tudo que é considerado moral e que nossa mente tenta racionalmente entender e processar; e do outro lado existem os sentimentos, as incontroláveis emoções que fazem a gente perder o ar e a vida valer a pena, ao mesmo tempo que complicam tudo aquilo que nossa mente racional tenta (em vão) manter organizado, limpo, descomplicado, leve.

Na vida, a realidade é bem diferente do ideal, daquilo que planejamos, que sonhamos, que desejamos, porque nós somos complicados. Então, com o passar dos anos, os problemas vão ficando mais densos, as raízes mais profundas. O fundo do poço torna-se cada mais mais fundo. E o buraco é sempre mais embaixo. E por mais que tentamos viver a vida com leveza, tem certas coisas que merecem seu devido peso e importância.

Life is limited.

A vida é limitada. Nós somos limitados. Nossa história nos limita, nossa condição nos limita, nossos sentimentos nos limitam. Nossas escolhas nos limitam. Somos o que somos. É o que é. E com certeza somos responsáveis pelas nossas escolhas, mas a vida não é (e não deve ser) tão “preto no branco” como teimamos em acreditar. Porque o “preto no branco” é muito leve, não dá espaço para o peso que tem o colorido.

Life is heavy.

A vida não é violino e rosas. Viver é pesado. A vida é complicada, bagunçada, complexa nas mais inconcebíveis proporções. Dinâmica. Tudo acontece ao mesmo tempo. As pessoas têm processos e momentos diferentes, não chegam prontas e nós nunca estamos prontos, porque somos seres inacabados, imperfeitos. E carregamos bagagens grandes, com cargas pesadas. Pois, assim como escreveu Kundera, não existe leveza onde há profundidade de alma, de sentimentos, de experiências. Somos todos complicados, complicando tudo, travando nossas próprias batalhas, sonhando com oportunidades melhores enquanto o peso de nossas escolhas nos afunda ainda mais na areia movediça.

O que nos resta é saber o que queremos absorver de tudo isso e o que vai ficar de fora. Podemos aprender a traçar linhas, criar barreiras, delimitar fronteiras. Mas, é preciso ter em mente que se queremos experiências significativas precisamos cruzar essas linhas, derrubar barreiras, construir pontes no lugar de muros. Resta saber qual é o limite do emaranhado. Qual é a força de cada nó. Quando devemos desatá-lo e quando devemos apertá-lo. Quando devemos criar laços no lugar de nós. Nós. Encontros são feitos de nós. E encontros são pontos de chegada ou são pontos de partida. Resta saber o que escolher então, o peso ou a leveza?

“Tudo na vida tem a ver com as linhas que delimitamos. Não é aconselhável criar muita intimidade com os outros. Fazer amigos, fazer amantes. Precisamos de fronteiras, entre nós e o resto do mundo, porque os outros são muito complicados. E tudo tem a ver com as linhas. Limites. Fronteiras. Barreiras. Podemos passar a vida desenhando essas linhas e torcendo para que ninguém as cruze ou, em alguns momentos, podemos escolher cruzá-las. É preciso decidir. Mas, saiba que muitas vezes as fronteiras não deixam os outros para fora, elas nos engaiolam dentro. A vida é complicada. Nós somos complicados. É assim que somos feitos. Cheios de desejos, sentimentos e emoções. Então podemos escolher passar toda uma vida delimitando fronteiras, desenhando linhas, ou, podemos escolher viver a vida cruzando essas fronteiras, apagando linhas. Mesmo sabendo que algumas dessas fronteiras são muito perigosas para serem cruzadas. Mas isso é o que eu sei: se vez ou outra você optar por jogar no vento toda essa cautela e dar uma chance ao complicado, a vista do outro lado pode ser espetacular.”

Adaptado de Grey’s Anatomy S. 01 E. 02 – The first cut is the deepest